sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Futebol, tática e complexidade: Jamais fomos modernos



Acima um trecho do livro “Pep Guardiola: a evolução”. Assim como provavelmente deve ser o livro, a parte citada traz muitas coisas interessantes e verdadeiras, como, por exemplo, que não é simples a compreensão do jogo, que é importante ter humildade e não ter ideias pré-concebidas e principalmente sobre a crítica feita à imprensa pela forma pobre de analisar.

No entanto, dois trechos me chamaram a atenção, por discordar deles. Sem ler o livro por completo, não posso analisar o pensamento de Guardiola como um todo, me apego a esses pontos para falar sobre o impacto que essas ideias têm sobre alguns setores da imprensa e alguns analistas de futebol. E a forma como alguns veem o esporte.

A primeira é: “o futebol contemporâneo alcançou uma elevada complexidade”... 

Sim. Isso é verdade, há toda uma complexidade no futebol atual. No entanto é extremamente pretensioso elevar essa “complexidade” como algo contemporâneo, basicamente vendendo a ideia de que no passado (anos 60, 70...) não existia tal complexidade. Mentira. Existia sim e talvez fosse até pior. 

Essa ideia não é algo que se resume ao futebol, é apenas a reprodução de que o ser contemporâneo é mais evoluído do que o do passado. Ou seja, "somos mais modernos” e “avançados” porque temos mais tecnologia, absorvemos conhecimento e etc do que o sujeito da década de 70. O que não necessariamente é verdade e o livro “jamais fomos modernos” (de Bruno Latour) ajuda a desconstruir. 

No futebol o mesmo vale. Vivemos sim uma época de avanços, principalmente na parte da tecnologia, estatísticas, big data, etc (o livro “Os Números do Jogo” é bem interessante). A figura do analista de desempenho é praticamente necessária em qualquer time. Isso é real. Porém, como disse, a mesma complexidade que existe atualmente com essas novidades, existiu no passado, por exemplo, com a maior importância dada a preparação física no futebol (principalmente a partir da década de 60), lá, o futebol perdeu um pouco do ar mais “amador” e se tornou mais profissional, se começou a privilegiar fatores físicos, se pesquisar e aplicar. 

Porém muitos podem falar. “Sim. Porém o aspecto físico atualmente é amplamente abordado e incluso no futebol”. Verdade. Muitas vezes com a ajuda da tecnologia atual e, principalmente, com ideias dos vanguardistas das décadas anteriores. E vendo por esse lado, se torna bem mais complexo entender a importância da preparação física no futebol no passado, quando isso era mais ignorado, do que atualmente. Ou seja, para eles era bem mais complexo e difícil entender essa parte do jogo. E como aplicá-la.

Citei apenas um exemplo, o da preparação física, mas poderia citar outros como questões relativas a logística de jogo (que influi), gramado, alimentação, etc. E, principalmente a tática. Assim como houveram mudanças táticas da década de 90 para agora, talvez bem mais complexos foram os avanços da década de 30 para 50 e de 70 para 80, etc. Sempre houve “evolução” e com isso complexidade. Não é uma singularidade nossa. A mesma “elevada complexidade” que temos atualmente, existiu quando foi criado o WM (talvez a tática que por mais tempo perdurou), passando por 4-2-4, 4-3-3, 3-5-2, etc. Cada uma com sua importância histórica. São táticas, eram estudadas, apenas “criamos” (ou reaproveitamos algo) a nossa tática (o livro A pirâmide invertida: A história da tática no futebol). Não elevamos nada. E, talvez, nem revolucionamos. 

O segundo ponto que discordo é: “Se não se faz um mínimo esforço para entender o jogo, as análises acabam sendo desalentadoramente supérfluas, recorrendo-se a aspectos totalmente alheios ao próprio jogo”.

A frase é correta. Porém, não necessariamente discordando do autor, mas sim da interpretação que muitos analistas (e "entendedores de tática") fazem desse tipo de ideia, discordo de quando ele fala sobre os “aspectos alheios ao próprio jogo”. 

A frase é até paradoxa para a forma que muitos dos “modernos analistas" veem (ou dizem) o jogo. Porque eles tentam explicar algo complexo, se baseando “apenas” na tática. Dão muitas vezes uma importância muito maior do que a mesma merece. É como se eles monopolizassem o entendimento da tática e a transformassem na matéria praticamente única do futebol, ignorando, vejam só, aspectos totalmente alheios ao jogo que são extremamente importantes.

E que aspectos são esses? Entre outras coisas, aspectos humanos. Se o jogador está “bem de cabeça” ou não. Por exemplo, se ele tiver com algum problema de ordem pessoal invariavelmente isso atrapalhará no seu desempenho profissional, pode ter o melhor treinador (taticamente falando) do mundo que ele dificilmente tirará muito dele. Por isso, inclusive, é muito comum técnicos com qualidade tática não irem muito longe na carreira porque basicamente não possuem a qualidade (e é importante) para gerir grupos. E sim, isso é necessário. Um treinador de futebol não pode se resumir ao “tático”, ele trabalha com humanos, um grupo com várias personalidades diferentes, faz parte da sua obrigação ser um bom gestor. 

Em resumo, como disse, um pensamento mais aprofundado do futebol é sempre importante e necessário. Na verdade em qualquer aspecto da vida. Porém, tentar passar a ideia (que talvez não seja a de Guardiola mas é a de muitos) de que vivemos uma época que é “mais difícil entender o futebol” que somos mais modernos e etc, e não apenas fruto das nossas singularidades, assim como foi na década de 60..70..80, é prepotência pura. Não, um esporte com mais de 100 anos de existência não se tornou mais complexo e difícil apenas porque é o momento que você vive e, talvez, você se ache mais “evoluído”.