Foto: Raimundo Pacco/Estadão.
O último dia 12 de Janeiro foi histórico para o futebol brasileiro, mas quase passou em silêncio. Foi a estreia do Gaviões Kyikatejê na primeira divisão do Campeonato Paraense. Assim como a própria competição soa invisível para a mídia comercial, o time também quase foi vítima da mesma falta de atenção, inclusive no momento mais importante da sua trajetória. A partida foi contra o tradicional Paysandu, dentro da casa do adversário. O resultado de 2x1 favoreceu o Papão da Curuzu, mas isso pouco importa. A maior vitória do jogo não consta na súmula e não veio de uma bola estufando as redes. O maior feito do espetáculo foi a conquista inédita e suada dos Gaviões ao entrar para a história como o primeiro clube indígena a se profissionalizar sem perder os vínculos étnicos.
A estreia foi uma verdadeira festa. Antes mesmo de o jogo começar, os jogadores fizeram uma demonstração da cultura da tribo. Eles cantaram o hino nacional na língua “Jê”, puseram os principais adornos do corpo, tiraram foto e correram com as toras, instrumentos da cultura Jê que, agora, são também de trabalho para os atletas-índios. Nos treinos, os jogadores usam os exercícios do cotidiano indígena para aperfeiçoar o corpo para os embates nas quatro linhas, como nadar no Igarapé, desviar das flechas – devidamente protegidas - e correr com as toras sobre as costas. Haja vigor físico para aguentar essa maratona.
Os Gaviões são de Bom Jesus do Tocatins, cidade que fica a 500km de Belém. O time começou a se organizar em 2008, quando ainda era conhecido como Castanheiras E.C Em 2009, deixou o amadorismo, alterou o nome para Gaviôes Kyikatejê e passou a disputar as principais divisões do Estadual. As dificuldades são enormes, desde as financeiras até as jurídicas, mas o desempenho da equipe só evolui, somando boas atuações nas competições, até chegar a maior conquista no momento: a profissionalização e a estreia na elite do futebol do Pará.
Ex-técnico, fundador e atual presidente do clube, Zeca Gavião viaja espalhando sua principal mensagem durante as partidas dos Gaviões: Mostramos um pouco da nossa cultura através do futebol. Nossa população sofre. Queremos, com o futebol, uma interação com o Brasil – disse o cacique ao LanceNet!
Da intenção do líder do grupo nasce a ironia que o futebol brasileiro prega aos estreantes. Desde a década de 1930, no mesmo contexto em que Gilberto Freyre falava em “democracia racial” no clássico Casa-grande & Senzala, o Brasil construía a tradição do futebol-arte, o formato misto de habilidade, dança, ginga e malícia. Para os analistas táticos, essa condição era forte entre os brasileiros por causa da miscigenação, das heranças negra e indígena, do povo ingovernável que não se submetia à lógica dos colonizadores, aplicando-lhes verdadeiros “dribles”. Tese reforçada pelo pioneiro conceito de Freyre na sociologia brasileira, que encontrava a identidade nacional na mistura das raças. Não é à toa que Ruy Castro registrou na biografia de Garrincha, uma dos nossos maiores mestres na arte do drible, a genealogia indígena da família do Mané, indicando o DNA indomável da habilidade. O próprio sociólogo de Apipucos, em publicações em periódicos dos anos 1940, endossava a sua teoria no futebol e contribuía para fortalecer o imaginário do futebol-arte como resultado de uma equação sociológica:
“o nosso estilo parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade individual. Os nossos passes, os nossos pitus, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, há alguma coisa de dança ou capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses […] ”
Nada contra o futebol arte. Ele, de fato, dá a tonalidade mais lúdica ao esporte e amplia as emoções nas arquibancadas. Um jogo sem drible é muito insosso. Mas, apesar desse repetido discurso do balé brasileiro com a bola, poucas oportunidades existiram para que os índios se organizassem em clubes e participassem de competições nacionais para mostrar a habilidade da qual são considerados os principais responsáveis. As heranças são mais um discurso do que um incentivo à uma realidade justa e democrática.
As referências indígenas no futebol brasileiro são poucas e se reduzem apenas às heráldicas. Basta lembrar, por exemplo, o Guarani Futebol Clube, de São Paulo, que mesmo fundado por imigrantes italianos, carrega no nome a referência Guarani e se orgulha de um pequeno indiozinho como mascote, símbolos inspirados pelas composições modernas de Carlos Gomes e pela idealização do índio, comum nas obras literárias do Romantismo brasileiro no século XIX. Outros clubes, como o Tupi, de Minas Gerais, também evocam essa memória.
O atraso de quase cem anos para a inserção oficial de um clube essencialmente indígena no esporte vem para relembrar que o futebol, aquele que teve origem na moderna Inglaterra e que pregava a igualdade de chances, também dá seus dribles, faz uma tabelinha com o inusitado e nos surpreende. Mais do que títulos, os Kyikatejê buscam, através do futebol, outras conquistas negadas em nossa história e impedidas, muitas vezes, até mesmo pela perene “democracia racial”. Vida longa aos Gaviões.
muito bom, Afonso!
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